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Largada na casa da avó, mais uma vez, no horário de trabalho, fantasiei morrer para ver meus pais chorarem minha falta. Era um meio de eu mesma chorar: sensibilizava-me vê-los jogados ao asfalto onde estava meu corpinho atropelado, nenhuma felicidade nunca mais. Foi a primeira confusão entre arte e distração que consumi na vida, junto com a Turma da Mônica: fantasias mentais que, elaboradas com o propósito primordial de me fazer sentir bem, acabavam abrindo as portas pra algum mistério mais profundo sobre a existência: Ter prazer em me imaginar morrendo pra causar sensação nos meus pais? Completa loucura.

 

A descoberta da manipulação suicida trouxe na esteira velórios imaginários ainda piores: dos meus pais (eles saíram pra jantar e não voltaram depois da novela, permitida só na casa da minha avó porque na nossa fazia diminuir o cérebro até ficar desse tamaninho, ó). Do meu irmão (na verdade, ele só quebrou o braço depois de tentar alcançar bombons em cima da geladeira). Da minha prima (ela arrancou a cabeça da minha Barbie).

 

Não que eu tenha sido um tipo de Harold, de Harold and Maude, quando eu era criança, mas a lembrança dessa vivência interior me gerou reflexões importantes mais tarde.

 

Um dia, bateu as botas o pai do meu ex-namorado do Rio de Janeiro, por quem eu ainda era apaixonada. Ele me telefonou no trabalho, chorando. Falei calma, essa dor vai passar, e tal, e escapuli pro terraço do edifício da Fundação de Cultura, onde eu fazia assessoria de imprensa. Sobre o uso das sacadas, já tinham baixado uma circular interna proibindo o tereré pra não gerar imagem aérea negativa do funcionalismo público, mas ainda não tinham falado nada sobre dormir escondido – como era testemunha semanal o simpatizante marxista que aqui chamaremos Cochilov, e nem sobre chorar o pai do ex-namorado do Rio de Janeiro por quem você é ainda apaixonada. Segundas-feiras são dias difíceis.

 

Olhando pra Avenida Fernando Correa da Costa, o vento secou as lágrimas minguadas de dó e levou junto certa inocência, porque ali me ocorreu algo terrível, que eu nunca tinha pensado antes. Pensei que, pior que uma tristeza, era passar por algo que você sabe que é triste, mas não conseguir sentir à altura. Pois se meus pais morressem, eu poderia sentir à altura? Alguém um dia conseguiria sentir à altura?

 

Talvez eu tenha sido uma jovem de sangue quente, mas, nessa época, superar as coisas me soava sempre um pouco como traição. E a expressão do pensamento, então, era fonte de poder e injustiça: num intervalo de café, a colega conta que perdeu uma pessoa, no final de semana, e isso é menos interessante pros presentes que alguém discorrendo com perícia sobre as boates démodés dos finais de semana.

 

Claro que morre gente todos os dias. Claro que narrar, como assar carne, é uma habilidade a ser conquistada. Mas não é chocante uma pessoa não conseguir acessar uma dimensão tão fundamental, que gera tanta felicidade quando flui ou tanta infelicidade quando trava?

 

Uma vez uma amiga luxou a perna no primeiro dia da planejada viagem com o noivo na Espanha. Mandou-me um e-mail de lá, falando que a tinha quebrado. Gastei tanta pena dela com isso, que, quando soube a verdade, quis cobrar de volta.

“Mas se eu só dissesse que tinha deslocado, você nunca ia entender como eu estava me sentido”.

 

Não por acaso, essa serpente é escritora, como eu.

 

Quando eu morava na cidade que me é tão substantiva que eu chamo minha, eu não conseguia escrever. Por vários motivos. Um deles é que eu não queria largar o osso, o espólio gerado por vinte e tantos anos de uma vida que não se recusou a nada: eu tinha muita família, muitos amigos, muitos namorados, muitos estudos, muitos trabalhos, muitos deveres, muitos prazeres, e queria me casar com todos, morar junto e ter filhos.

 

Como diz minha outra avó, a paterna: “Mamá na gata você não qué!”

 

Isso posto, recentemente mudei da Minha Cidade e fui pra Outra Cidade, falando pra maioria das pessoas que era um momento de dar prioridade pra escrita.

 

A gente não pode sair sem falar nada, não é mesmo?

 

Sei que falei que vinha escrever e vim, e escrever é mais ou menos o que eu falaria que estou fazendo – se estivesse do outro lado da mesa o examinador, avaliando os escolhidos pra ganhar o prêmio monumental: passar despercebida nessa sociedade bárbara, áspera e cruel, onde não se pode perder alguém dignamente no cafezinho nem ser cultuado pelos pais sem estar atropelado, na frente do quintal 1377 na rua Eduardo Santos Pereira. (...)

 

 

Trecho de capítulo publicado no livro A criação da memória, organizado

por Paulo Ricardo Kralik Angelini para a Edipucrs em 2014.

Minha outra vida

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